Revolução cultural chinesa e o Pa Kua
Ao longo da história chinesa, as artes marciais desempenharam um papel significativo, sendo moldadas e influenciadas por várias dinastias. Desde a unificação da China sob a Dinastia Qin até as regulamentações impostas pelos governantes Yuan e Qing, as artes marciais evoluíram e se adaptaram. Um aspecto crucial desse processo histórico é a natureza cíclica das dinastias, onde uma frequentemente se posicionava de forma diametralmente oposta à anterior. Inúmeras vezes, o passado foi destruído para construir uma nova narrativa, como durante a Síntese Han e nos períodos Yuan e Qing.
Ao longo desse processo cíclico, a Revolução Cultural (1966–1976) foi um período profundamente prejudicial para as tradições marciais, cujas repercussões são sentidas até os dias atuais. Durante essa época, Mao Zedong através do Partido Comunista Chinês buscou erradicar elementos tradicionais e “burgueses” da cultura chinesa, já que segundo eles, esses elementos atrasavam o crescimento chinês. Este movimento causou uma perseguição intensa aos mestres e praticantes de artes marciais, destruição de conhecimento e recursos, censura e modificação das práticas marciais, além de um impacto profundo na percepção social dessas práticas.
Dentro da revolução cultural pode-se destacar a campanha contra as “Quatro Coisas Velhas” que levou a uma devastação cultural, transformando a ligação entre as artes marciais e as filosofias tradicionais. Este texto aponta as abordagens que cada dinastia deu as práticas marciais em seus períodos, incluindo a experiência de exilados como o Mestre I Chang Ming e seu encontro transformador com o Mestre Magliacano.
Dinastias Antigas
Dinastia Qin (221–206 a.C.)
Após a unificação da China, o imperador Qin Shi Huangdi implementou uma política de desarmamento para prevenir rebeliões. Armas foram confiscadas e derretidas para construir estátuas de ferro e ferramentas agrícolas.
Dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.)
Durante a dinastia Han, as artes marciais foram incentivadas, especialmente entre os militares. A prática também era comum entre civis, e escolas marciais começaram a se formar.
Dinastia Tang (618–907 d.C.)
As artes marciais floresceram, com a criação de muitas formas e estilos. O governo Tang incentivava o treinamento marcial para fortalecer o exército.
Dinastia Song (960–1279 d.C.)
Embora as artes marciais fossem praticadas, o governo Song regulamentava o uso de armas e a prática de artes marciais para evitar insurreições.
Dinastia Yuan — Mongóis (1271–1368 d.C.)
Os mongóis impuseram restrições rigorosas sobre a posse de armas pelos chineses Han para manter o controle. No entanto, os mongóis permitiam que seus próprios soldados e grupos leais praticassem artes marciais.
Dinastia Ming (1368–1644 d.C.)
O governo Ming incentivou as artes marciais para fortalecer o exército. Mestres de artes marciais começaram a documentar suas técnicas, resultando em manuais marciais. Muitos dos manuais antigos ainda estudados hoje em dia, nasceram nessa época.
Dinastia Qing — Manchus (1644–1912 d.C.)
Inicialmente, a dinastia Qing, governada pelos Manchus, impôs restrições sobre as artes marciais e o uso de armas pelos chineses Han para evitar revoltas. No entanto, ao longo do tempo, essas restrições foram relaxadas, e as artes marciais voltaram a ser praticadas amplamente. O período Qing viu a codificação e sistematização de muitos estilos de artes marciais.
República da China (1912–1949)
Após a queda da dinastia Qing, houve um renascimento das artes marciais. O governo republicano incentivou a prática de artes marciais como uma forma de fortalecer o povo e promover a cultura nacional.
Revolução Cultural Chinesa (1966–1976)
Como dito no início, Mao Zedong iniciou a Revolução Cultural para recuperar seu poder e controle após o fracasso do Grande Salto Adiante, purgar elementos “burgueses” e “revisionistas” do Partido Comunista, mobilizar a juventude como base de apoio, destruir tradições e instituições que considerava obstáculos ao progresso revolucionário, com a justificativa de que essa reforma tornaria a sociedade e a economia chinesa mais igualitária e moderna.
Durante a Revolução Cultural, Mao usou estrategicamente os jovens para romper com as tradições antigas e implementar uma nova ordem ideológica. Considerados mais receptivos a mudanças e menos apegados ao passado, os jovens foram intensamente doutrinados e mobilizados como Guardas Vermelhos para destruir símbolos culturais, perseguir intelectuais e eliminar influências feudais e confucionistas. Essa mobilização visava erradicar valores conservadores simbolizados pelas tradições e filosofia antigas, para estabelecer uma sociedade moderna alinhada aos princípios comunistas, resultando na devastação do patrimônio cultural e em um trauma social profundo, mas também consolidando o poder revolucionário de Mao.
As “Quatro Coisas Velhas” (四旧, “Sì Jiù”)
Durante a Revolução Cultural, houve um movimento para eliminar o que era chamado de “as 4 coisas velhas”, conceitos ligados ao passado e considerados influências feudalistas e burguesas. A erradicação delas, visava promover uma transformação radical na sociedade chinesa. Monumentos históricos, livros, obras de arte e práticas tradicionais foram destruídos ou banidos, e as pessoas foram incentivadas a adotar novas formas de pensamento e comportamento alinhadas com a ideologia maoista.
As “Quatro Coisas Velhas” são:
1. **Velhas Ideias (旧思想, Jiù Sīxiǎng)**
2. **Velha Cultura (旧文化, Jiù Wénhuà)**
3. **Velhos Costumes (旧风俗, Jiù Fēngsú)**
4. **Velhos Hábitos (旧习惯, Jiù Xíguàn)**
O Impacto Destrutivo da Campanha Contra as “Quatro Coisas Velhas” nas Artes Marciais
A Revolução Cultural teve um impacto devastador nas artes marciais e na vida cultural e social na China. Mestres de artes marciais foram perseguidos, presos, e até executados, sendo forçados a abandonar suas práticas ou a ensinar em segredo. A prática de artes marciais foi suprimida, escolas foram fechadas e a transmissão dessas tradições diminuiu significativamente. A queima de livros e destruição de documentos resultou na perda irreparável de conhecimento.
O governo censurou técnicas de artes marciais, permitindo apenas formas alinhadas com a nova ideologia e promovendo uma espécie de Wushu moderno, uma versão estilizada e propagandística das artes marciais tradicionais focada apenas no treino das formas. A campanha contra as “Quatro Coisas Velhas” causou uma erosão significativa nas tradições e filosofias associadas às artes marciais, enfraquecendo sua ligação com o Taoismo, Confucionismo e Budismo.
Socialmente, as artes marciais passaram a ser desacreditadas como superstição ou relíquias de um passado feudal, perdendo seu status de prática nobre e espiritual.
A revolução cultural e o Mestre I Chang Ming
Como visto anteriormente, a Revolução Cultural, trouxe uma intensa perseguição aos praticantes de artes marciais, levando muitos a se exilarem em lugares como Hong Kong, Estados Unidos, Coreia e Canadá. Um desses exilados foi o Mestre I Chang Ming, que se estabeleceu em Seul na Coreia do Sul com sua família. Lá, além de trabalhar como acupunturista, ele ensinava informalmente Pa Kua para um pequeno grupo. Foi nesse contexto que I Chang Ming conheceu o mestre Magliacano.
Em 1975, Mestre Magliacano viajou para a Coreia para visitar seu mestre de Hapkido, treinar com mestres locais e realizar um curso de acupuntura, e assim através de um amigo em comum, conheceu I Chang Ming, que se tornou seu Mestre de Pa Kua, transformando sua vida para sempre. Essa viagem foi documentada na revista argentina "Yudo Karate" numero 26 que saiu em Fevereiro de 1976, nessa revista está escrito:
"Partiu rumo a Seul Coreia o segundo Dan de Hapkido Isidro R. Giordano, segundo seu plano previsto, sua estadia será de um ano[…] O motivo de sua visita é para realizar um curso de aperfeiçoamento na associação internacional dessa arte (Hakpkido) e conhecer os principais centros de artes marciais[…]"
Mestre Magliacano frequentemente compartilhava que seu mestre preferia não falar sobre sua vida na China, pois se sentia profundamente frustrado com os acontecimentos que levaram ao seu exílio. Ele costumava dizer:
“Sou um refugiado, um perseguido, um ninguém, sou o homem que não quer ser.”
Mestre I Chang Ming, que possuía uma formação taoista, ensinou a Mestre Magliacano a importância da não competição e o uso dos oito trigramas de Pa Kua em todas as esferas das práticas marciais, terapêuticas e na vida cotidiana.
Após retornar à Argentina, Mestre Magliacano teve a oportunidade de receber Mestre I Chang Ming em seu país, mas depois perderam contato, afinal era uma época anterior à internet. Em 1995, durante uma viagem aos EUA, Mestre Magliacano conseguiu contactar um dos filhos do Mestre I Chang Ming, que lá vivia, e que lhe comunicou o falecimento de seu pai.