Tiro instintivo — Pa Kua Arqueria

Sérgio M. de Souza
6 min readFeb 16, 2021

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imagem retirada do manual Wu Bei Yao Lue (武备要略)

O tiro instintivo é aquele realizado sem auxílio de qualquer sistema ou mecanismo de pontaria, é chamado também de tiro natural porque acompanha o arco desde a sua origem. Nessa técnica a flecha será guiada pela postura do arqueiro: a posição dos pés, a altura da puxada e a memória muscular. Com tudo isso desenvolvido e muita atenção à consciência corporal, é possível acertar o alvo onde estiver, e é daí que nasce o conceito de “mirar sem mirar”.

Apesar da definição simples, o desenvolvimento de toda essa percepção e a capacidade de atirar com precisão com o tiro instintivo toma tempo e prática, podendo trazer frustrações ao praticante. Entretanto, a partir do momento que se começa a sentir os músculos se adaptando com facilidade a cada uma das posturas e o tiro indo exatamente onde desejado, a sensação de realização e êxito é notória, e o praticante acaba adquirindo também uma habilidade que irá perdurar por muito mais tempo, devido à memória muscular.

"Quando o arqueiro erra o centro do alvo, ele se vira e busca a causa de sua falha em si mesmo." (Confúcio 551 a.C — 479 a.C)

Desenvolvimento do tiro instintivo — Ancoragem

Imagem mostrando as diferentes alturas que a flecha pode ir (Fonte: https://sites.google.com/view/thebowhandanchor/home)

A ancoragem é quando atingimos o ponto máximo da puxada da flecha. Esse ponto normalmente é dado quando a mão que puxa a corda se posiciona no ponto certo para o tiro. Ele pode ser na altura dos ouvidos, ao lado da cabeça, ao lado dos olhos, no nariz, no queixo e outras posições. Na prática olímpica e em muitos estilos ocidentais de arqueria, após você encontrar a sua ancoragem ideal, ela é feita sempre da mesma forma para potencializar a mira principalmente para competições.

Por conta do desenvolvimento da arqueria a cavalo — na qual a utilização do tiro instintivo é essencial — muitos povos, com destaque para os asiáticos, utilizam diversos níveis (Altura x Posição) de ancoragens.
A variedade de ancoragens se deve a uma série de fatores, que vão depender tanto do ajuste da mão que puxa a flecha, quanto da mão que empunha o arco e usa da sensibilidade do dedo indicador para medir o ponto exato de liberação da flecha, ou ainda, da observação da tensão da corda a partir de alguma parte de seu corpo. Isso vai depender muito do estilo de arqueria que a pessoa está praticando, se ela está a pé ou a cavalo e da posição que ela está atirando.

imagens com diferentes pontos de ancoragem, retiradas do manual Wu Bei Yao Lue (武备要略)

Desenvolvendo a Ambidestria

Longbow europeu — Arco chinês — Yumi Kyudo

Outra habilidade desenvolvida com a prática do tiro instintivo é a ambidestria — capacidade de atirar com ambas as mãos. Isso é possível principalmente com arcos que não possuem janela, que é o local onde se encaixa a flecha, como os arcos tradicionais asiáticos e também alguns modelos de longbow, como o britânico e o yumi japonês. Segundo Stephen Shelby no seu livro Chinese Archery(pag. 305), o arqueiro deveria primeiro aprender a atirar com as duas mãos antes de começar o tiro a cavalo. (Existem também arcos com janela adaptados para se atirar dos dois lados.)

Aplicação da técnica — Alvo em movimento

Demonstração de tiros em alvos em movimento pela Liga Internacional de Pa kua

O treino com alvos em movimento é um dos métodos para aplicarmos na prática a técnica do tiro instintivo. Quando atiramos em um alvo em movimento temos que calcular a distância e projetar onde aquele alvo estará no momento que a flecha o atingir. Esse cálculo é feito numa fração de segundos e de forma intuitiva, e para alcançar sucesso se necessita muita prática. Atualmente, existem várias competições utilizando alvos em movimento e o domínio do tiro instintivo é essencial nessas competições.

Tiro instintivo na história — Arqueria montada

O tiro instintivo é praticado no mundo todo e foi tal técnica que auxiliou muitos povos na prática da Arqueria montada, já que é quase impossível mirar com precisão utilizando somente os olhos enquanto se está em cima de um cavalo galopando em alta velocidade.

Os cavaleiros dependiam da sua memória muscular, coordenação entre olhos e mãos, além de um cálculo intuitivo da distância e velocidade entre ele e o alvo para o melhor tiro. Com essa técnica, quando se desenvolve a percepção sobre o tiro, você consegue manter os dois olhos no alvo durante todo o processo mesmo com o movimento do cavalo e atirando em diferentes direções, já que o alvo pode estar em qualquer ponto ao seu redor, inclusive atrás de você.

Abaixo uma citação de Gao Ying autor chinês do livro "The way of archery" de 1637 que explica com exatidão a sensação de se atirar utilizando o tiro instintivo.

“Ao puxar a corda, você se concentra no alvo. Escolha o menor ponto visível no alvo. Se for um alvo, concentre-se em um buraco deixado por um tiro anterior: não em todo o círculo amarelo. Se o alvo for um animal, concentre-se em um único pelo ou pena, não no peito. Entre o momento em que você sentir que seus braços e ombros estão nivelados e antes que a ponta da flecha alcance o dedo da mão do arco, maximize sua concentração. Mas não se concentre no alvo: você já sabe onde ele está e sua mente e seus membros já sabem o que você quer fazer. Concentre-se em seu tiro.Concentre-se na sensação de que o tiro está certo. Espere sentir a ponta da flecha no dedo e, quando ela chegar, não hesite: relaxe e solte. O disparo não é antecipado. É como uma libélula tocando a superfície de um lago.” (Gao Ying, 1637)

O tiro instintivo na Liga Internacional de Pa Kua

Pa Kua Arqueria
Pa Kua Arqueria

Pa-Kua Arqueria trabalha com um resgate histórico da prática oriental tradicional. E o tiro instintivo faz parte da prática do aluno desde o seu primeiro contato com o arco e a flecha. Não usamos nenhum tipo de equipamento de mira e focamos em técnicas de postura e respiração para que ao longo das aulas o praticante ganhe memória muscular, precisão e consciência de todo o movimento. Aos poucos, as posturas e formas de atirar vão ganhando complexidade — ajoelhado, sentado, deitado, caminhando, correndo e até saltando. O trabalho ainda faz com que a pessoa se torne mais focada e precisa; sendo benefícios que serão incorporados não apenas nos treinos, mas também no seu dia a dia fora da escola.

Fontes e material para estudo:

Video sobre a diferença entre os tiros mediterrâneo e asiático

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Sérgio M. de Souza
Sérgio M. de Souza

Written by Sérgio M. de Souza

Praticante e professor na Liga internacional de Pa Kua

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